instalação em galeria de arte, são paulo
A Ruína como Embrião
Por Guilherme Wisnik
Pedaços de madeira jazem caídos em ângulos retos ou diagonais no chão, como se fossem tudo o que restasse das treliças do telhado da Galeria Jaqueline Martins, agora desabadas e em fragmentos, em ruínas. O trabalho site specific de André Parente e Pedro Varella no segundo andar da galeria usa esses elementos arquitetônicos e estruturais para gerar formas escultóricas, transformando o que era um espaço neutro na aparência de uma ruína, os símbolos de alturas elevadas agora ancorados no chão.
Há uma lógica formal e construtiva nos ângulos, juntas, sobreposições e amarras que formam as treliças. O resultado é um design repetido e modular, onde a sequência de elementos cria seu próprio ritmo visual, liberando o espaço de paredes e pilares indesejados. Através da intervenção dos artistas, os fragmentos no chão não transmitem mais a ideia de construção, tornando-se, em vez disso, signos visuais independentes. Em aparente caos, os elementos arquitetônicos são decompostos em seus elementos separados. Como se a ordem cristalina do mundo transcendente próximo ao céu não pudesse se sustentar no mundo ordinário e telúrico em que vivemos. Em outras palavras, tudo o que resta na diáspora após a queda da Torre de Babel é confusão, ruído, incomunicabilidade.
Mas os resíduos fragmentários das treliças de madeira, feitas pelos próprios artistas, também podem ser vistos como letras enormes e misteriosas tentando transmitir alguma mensagem criptografada na escala de nossos corpos. O arquiteto Paulo Mendes da Rocha citava a funkeira carioca Deize Tigrona quando dizia: “Para quem não sabe ler, o pingo do i é uma letra”¹, ao transmitir a ideia de que tudo o que é abstrato se funda em algo material, algo real. Quando organizadas em formas estritamente geométricas, as treliças elevam-se para formar o telhado, unindo-se suavemente para formar seu topo, enquanto os mesmos elementos escultóricos, espalhados pelo piso em diferentes arranjos, podem transformar o funcional em algo lúdico, inclinados sobre tripés que lembram brinquedos de playground, como uma gangorra infantil. Em outras palavras, a aparente desorganização do espaço pode ser lida como uma reorganização dos mesmos elementos formais ao longo de outros princípios (códigos).
“Aqui tudo parece ainda em construção, mas já está em ruínas”, canta Caetano Veloso ao falar de um país que estava fora da nova ordem mundial². A letra é uma citação do livro Tristes Trópicos, do antropólogo Lévi-Strauss, no qual ele define a natureza entrópica das cidades brasileiras – e, em particular, de São Paulo. Em diálogo com essa ideia, em “Duas Águas”, André Parente e Pedro Varella ressoam com a obra do poeta Paulo Leminski, um autodeclarado “anarquiteto da desengenharia”³. A ruína é um embrião de uma nova construção. E se podemos lê-la, também podemos construí-la.¹
Paulo Mendes da Rocha, Maquetes de papel. São Paulo: COSAC Naify, 2007, p. 18.
² Caetano Veloso, “Fora da ordem”, Circuladô, 1991.
³ Paulo Leminski, “Ler uma cidade: o alfabeto das ruínas”, in Ensaios e anseios crípticos. Belo Horizonte: Polo Editorial, 1997, p. 176.
endereço galeria jaqueline martins
fase executado
projeto andré parente e pedro varella
data 2022